Fundação de Santos e São Vicente

Foi assim e foi então, sob a égide da esperança, que a vontade e a ação dos pilotos de duas pátrias - Portugal e Florença - deram à região, cujo futuro feliz bem-agouravam, a invocação do santo espanhol, o nome São Vicente, que precederia na História e na Geografia do Novo-Mundo, ao próprio nome Brasil, revelado à luz apenas nove anos depois.
À sombra daquela generosa bandeira de heroísmo e de fraternidade, a drapejar nos mastaréus, estabelecia-se, na simbiose das origens (a de André, a de Américo e a do Santo) que presidia ao apossamento e batismo da terra, o simbolismo profético da internacionalidade ou universalidade que haveria de presidir sempre à formação e ao crescimento da futura e mais rica província do Brasil, o atual Estado de São Paulo, e dava-se, a partir daquele instante, um título cristão, que era como um estandarte, a todos os homens que ali nascessem, naquelas regiões encadeadas, outrora denominadas por legendas autóctones: vicentinos! Título que seria a primeira e natural herança de todos eles, e que, nos índices da própria Ciência antropológica, marcaria e designaria mais tarde o tipo padrão da nossa gente, o mais perfeito e o mais legítimo tipo racial brasileiro - o Bandeirante - sob a legenda, para nós ufanante, de Homo vicentinus!
Tal como na lenda grega de Deucalião, brotariam daquele casco embicado sobre as areias terminais de Embaré, como de uma pedra grande, o povoamento e a civilização, configurados nos Peros que a Nossa Senhora da Esperança deixaria.
Estava escrita a primeira página, quase desconhecida, de uma grande História, talvez por isso incompreendida em seus legítimos primórdios.

Com o português mestre Cosme, vivia a multidão dos tupis insulanos, e viviam portugueses e espanhóis, amigos ou agregados, e assim se fizera a São Vicente da primeira fase, que mais tarde, a dois espanhóis - Alonso de Santa Cruz, oficial do italiano Caboto, e Diogo Garcia de Moguér, aventureiro - caberia descrever e retratar, em seus aspectos e atividades principais (de 1526 a 1530), nos dois lados e nos dois núcleos da ilha histórica.
Era a segunda página, quase negada, daquela mesma História iniciada em 1502, e que se processara sobre dois pontos distantes que uma só conveniência econômica e social articulava.
Pouco além, ainda num 22 de janeiro, mas de 1532, na manhã bonançosa que sucedia a uma noite de borrasca, começava a terceira parte de tal História. Chegava ao mesmo lugar de 1502, de André e de Vespucci, o senhor de Alcoentre e Tagarro, o nobre Martim Afonso de Sousa, com a sua Nossa Senhora das Candeias, a confirmar o batismo e as esperanças do passado, firmado em títulos e promessas reais que lhe davam o governo e a propriedade de tais terras, implantando a Justiça, a Lei, criando a Administração e a Ordem, estruturando a vida econômica e social, e como que a iluminar, com o título da sua nau, a feitoria bifronte dos Vicentinos.
Trazia então o governador e enviado de d. João III, colonos e fidalgos portugueses, mas trazia também numerosos colonos alemães e italianos, que caracterizariam e consagrariam, por suas origens, a internacionalidade e universalidade do esforço, da ação, da mentalidade e dos fundamentos étnicos, que haveriam de forjar o futuro colosso sobre aqueles pés.
Desaparecia o Bacharel, para além das cortinas misteriosas da sua antiga Cananéia; oficializava-se o povoado de Oeste; criava-se a Vila oficial e capital, com igreja e pelourinho, em nome do rei; erigiam-se os Engenhos, marcos efetivos da grande indústria colonial; estendiam-se a lavoura e a pecuária; positivava-se uma Economia; surgiam um grande porto e uma grande cidade, Santos, à ilharga da Vila capital, em sua primeira denominação, poética, pitoresca, brasileiríssima: Enguaguassu!
Ratificava-se o simbolismo inicial de 1502 e consagrava-se na História a predestinação vicentina ou paulista, numa página forte de comunhão e colaboração de homens de todas as Pátrias, de cooperação internacional, verdadeira consubstanciação de energias, de sentimentos e de espíritos universais.
Ali estavam, ao fim de 1533, quando Martim Afonso acabava de tornar à sua Lisboa, debuxadas na pauta da grande sinfonia da América, como notas fortes do mesmo compasso musical, a São Vicente feitoral do Bacharel, de Gonçalo da Costa, de Francisco de Chaves, de Pero Capico, de Alonso de Santa Cruz, de Diogo Garcia de Moguér, de Antonio Rodrigues, e oficial de Martim Afonso, de Fernão de Moraes, de Belchior de Azevedo, de Antonio de Oliveira, de Pero Correia, e a Santos (inicialmente Enguaguassú) da gente do Bacharel, e depois, de Martim Afonso, de Afonso Ribeiro, de Braz Cubas, de Pascoal Fernandes, de Domingos Pires, de Pero e Luiz de Góis, de José e Francisco Adorno, de Rodrigo de Lucena, de Rui e Francisco Pinto, de Eleodoro Eoban, de Francisco Velho, de Jorge Ferreira e de mestre Bartolomeu Gonçalves.
Muito mais do que em 1500, pelas mãos de um Cabral itinerante, nascia em 1532, pelas mãos de Martim Afonso de Sousa, o Brasil plantado por André Gonçalves e Américo Vespucci, continuado pelo bacharel mestre Cosme, concretizado nas duas fundações definitivas do Senhor de Alcoentre e Tagarro e seus secundadores, as cidades irmãs da Ilha de Goiaó e São Vicente, as estacas generosas do triunfo.
1502/1532, um conjunto de tempo, torna-se assim um monumento cronológico, a escada de trinta degraus que simbolizaria toda a História ascendente de uma terra e de um povo - de São Vicente, de Santos, de São Paulo e do Brasil - no que eles têm de mais progressivo, de mais legítimo e de mais sólido em nossos dias, na continuação normal daqueles primeiros dias; desdobramento, conseqüência, evolução, transformação, em surtos de pujança, de riqueza e dinamismo compondo o panorama da grandeza efetiva que aí está, aos olhos da gente e do mundo de 1958, nesta parte abençoada da América, que os cataclismos políticos e sociais, ou os maus governos, não conseguiram nem conseguirão toldar ou destruir.
Fonte: Novo Milênio
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